NEGÓCIOS

O forno que nunca apagou
Com os pés fincados na terra e a alma acesa pela tradição, Eliana Cunha transformou o que aprendeu com os pais nas feiras do interior em um caminho de resistência, afeto e empreendedorismo feminino


Imagens - Divulgação | Edição Ewerton Oliveira

Por Ewerton Oliveira

Na memória de Eliana Cunha, 49, o cheiro do doce de leite feito no fogão a lenha não se perdeu. Tampouco a imagem do pai, conhecido como Davi Doceiro, e da mãe, dona Tereza, misturando ingredientes no galpão improvisado nos fundos de casa em Miranorte. Foi ali, na fornalha que aquecia a subsistência de uma família inteira, que ela aprendeu o que nenhum curso ensina, a resistir com dignidade e empreender com raízes.

Entre os 10 e 12 anos, Eliana já acompanhava os pais nas feiras populares do Tocantins. Começou ajudando a embalar, depois a vender doces por quilo e, com o tempo, também produzia. Enquanto outras crianças brincavam, ela aprendia a negociar, calcular e encantar fregueses com a qualidade do que saía do fogão de casa.

A juventude foi marcada pela coragem. Tentou a política como candidata a vereadora e depois atuou na prefeitura. Mas foi em Palmas, para onde se mudou em 1998, que firmou novos caminhos. Primeiro como contratada, depois como servidora concursada a partir de 2000. Mesmo estabilizada no serviço público, não abandonou o que chamava de origem. Quando os tempos apertaram, a receita voltou à mesa. Os colegas elogiavam os lanches que levava ao trabalho, e ela começou a vender bolos ali mesmo, entre uma tarefa e outra.

Eliana faz questão de manter os cuidados da produção familiar que contempla queijos de Miranorte, leite de vaca e banha de porco. Evita ingredientes industrializados e conserva o que chama de 'gosto da infância'. A cozinha virou elo com o ado e é uma ferramenta para o futuro. "Faço com carinho. Cada bolo tem uma história, e todas elas começaram com meu pai e minha mãe."

Hoje, Eliana é exemplo do que tantas mulheres vivem no Brasil, o desafio de conciliar funções, manter tradições vivas e transformar conhecimento popular em fonte de renda. Seu ofício artesanal é também um gesto de memória, identidade e empoderamento silencioso.



Mulheres que movem o Brasil com as próprias mãos

Nas últimas duas décadas, o país viu crescer o protagonismo feminino nos pequenos e médios negócios, impulsionado por autonomia, tradição e adaptação à era digital

Eliana Cunha não é exceção. Ao contrário, é parte de um contingente cada vez mais expressivo de brasileiras que decidiram transformar conhecimento herdado em fonte de renda, segurança e independência. Nos últimos 20 anos, o empreendedorismo feminino deixou de ser nicho e se tornou movimento estruturante da economia nacional.

Dados recentes do Sebrae apontam que, em 2023, mais de 10 milhões de mulheres estavam à frente de empreendimentos no Brasil, o equivalente a um terço de todos os negócios ativos. O crescimento vem acompanhado de mudanças no perfil dessas empreendedoras - mulheres mais escolarizadas, com filhos, muitas vezes responsáveis sozinhas pelo sustento da casa - elas atuam majoritariamente em setores como alimentação, estética, serviços e comércio local.

O que antes era informal, hoje se formaliza com MEIs, redes de apoio e programas de capacitação. O programa Sebrae Delas, por exemplo, tem alcançado milhares de mulheres com orientação sobre gestão, finanças e marketing digital. Ao mesmo tempo, iniciativas como a Rede Mulher Empreendedora e o Fundo Social ELAS fortalecem o ecossistema feminino com microcréditos, mentorias e visibilidade.

Ainda assim, os desafios persistem. Mulheres enfrentam mais dificuldade de o a financiamento, menor participação em cadeias produtivas de alto valor e seguem sobrecarregadas pela chamada dupla ou tripla jornada. É nesse contexto que o empreendedorismo se apresenta não apenas como opção econômica, mas como estratégia de sobrevivência e afirmação.

Histórias como a de Eliana não estão nos manuais, mas sustentam o país todos os dias. Elas mostram que o empreendedorismo feminino no Brasil é, sobretudo, um ato de continuidade. Continuar vendendo, continuar criando, continuar educando os filhos, continuar resistindo. Com afeto, saber prático e uma força que, mesmo invisível, movimenta a economia e reinventa o futuro.



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